“Pai” (Abba) era a forma comum de Jesus orar para Deus, pela qual ele ensinou os discípulos e discípulas a buscarem ao Pai: “Pai nosso que estás [...]”. Esta forma é atestada pelo apóstolo Paulo em Romanos 8.15 e Gálatas 4.6. Pelo que sabemos, “Abba” era uma das primeiras palavras que uma criança que falava aramaico aprendia a balbuciar, junto com “Imma” (mãe), e não consta em nenhuma literatura judaica rabínica do tempo de Jesus. O que indica então o uso de “Abba” por Jesus e a Igreja primitiva? É possível analisar sob a perspectiva de pais e de filhos e filhas. Começaremos por este ângulo.
Ao usar “Abba” em vez de outra expressão, Jesus estava afirmando uma relação muito íntima, de total dependência e confiança em Deus. Ele viveu isso em várias situações, que podemos acompanhar no Evangelho de Lucas: ainda criança, quando estava no templo, disse que ali era a casa do Pai dele (Lc 2.49); na oração em que agradece de que as coisas do reino foram reveladas aos pequeninos (Lc 10.21); a forma como o filho da “Parábola do Filho Pródigo” trata o próprio pai (Lc 15); na oração de agonia no Getsêmani (Lc 22.42); no perdão que solicita a Deus quando está na cruz (Lc 23.34). No Evangelho de João também, por muitas vezes, Jesus se refere a Deus como “Abba”, sempre mostrando essa intimidade e dependência.
Só que Jesus não ficou nisso, ele não requereu exclusividade nesta relação tão profunda com Deus. Quando ensinou a comunidade a orar o “Pai-nosso” começou justamente com o “Abba”. Ou seja, Jesus está ensinando a todos nós nos aproximarmos de Deus com essa mesma disposição de uma criança, com total dependência e confiança, permitindo ao Pai nos conduzir, segundo a Sua vontade, neste mundo. Não foi isso que Jesus requereu de todos nós, quando disse: “se não se converterem, se não se tornarem como crianças, de maneira nenhuma vocês entrarão no Reino dos Céus. Portanto, aquele que se humilhar como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus” (Mt 18.3-4)?
Ao usar o “Abba” em suas epístolas de Romanos e Gálatas, o apóstolo Paulo queria afirmar a mesma coisa, com outras palavras. Ele disse: “Porque vocês não receberam um espírito de escravidão, para viverem outra vez atemorizados, mas receberam o Espírito de adoção, por meio do qual clamamos: ‘Aba, Pai’”. Somos colocados na mesma posição de Jesus pela ação do Espírito. E assim nos tornamos filhos e filhas do Deus Altíssimo.
O desdobramento do desafio está na conduta dos pais diante do modelo de Deus “Abba”. Celebramos neste mês de agosto o “Dia dos Pais”. Mas a que pais nos referimos? Basta ser o genitor para ser declarado pai? E quando aos pais adotivos, padrastos, mães que se desdobram como pais, por serem solteiras, ou pais que se desdobram como mães, em condições similares? Ou professores de crianças, mentores, homens que assumem um papel paterno na vida de tantas crianças e adolescentes que não têm um pai em sua vida?
Lembro de um querido irmão de minha igreja da adolescência e juventude, chamado Ezequias. Pai de quatro filhos e uma filha, ficou viúvo com todos muitos pequenos ainda. Ele não casou imediatamente, mas se colocou de forma muito presente na vida dos filhos e da filha. Quando os conheci, ainda havia três filhos morando com ele, e eu via como ele era firme, mas amoroso como uma mãe com eles. Considerando que era de uma geração bem mais severa que a minha, ainda hoje vejo como o “tio” Ezequias era um pai/mãe para eles, ou “pãe”, como costumávamos brincar. Na visão tradicional, o pai é a lei, o limite, e a mãe a afeição, o carinho. Mas o modelo de Deus como “Abba” mostra outra coisa: ser pai é amar incondicionalmente, esperar pelo filho que foi e não sabemos quando volta, acolhe-lo com festa mesmo se voltar arrebentado e quebrado, ou justamente por isso, amansar conflitos entre irmãos, e viver para que os filhos se realizem. Essa é a lição que vemos no pai da parábola de Lucas.
Sabemos que não somos infalíveis, muito menos perfeitos. Mas podemos ser amorosos, afetuosos, envolvidos com a vida de nossos filhos e filhas. E devemos celebrar a Deus a memória dos pais que se foram, mesmo aqueles mais rígidos, que viveram outra época e não souberam e não aprenderam a mostrar afeição, chorar e se emocionar como a mãe demonstra, em muitos casos. Há pais de todos os tipos, todas as vivências e cada um imprime algo muito importante na vida de seus filhos. Na vivência do amor e da afetividade, os pais podem influir numa visão de mundo diferente, menos violento, bruto e em que cada um quer levar vantagem, superando a visão de que ao pai cabe o papel de provedor da casa.
Sejamos nós os que tomam para si a responsabilidade de amar os filhos e filhas na mesma medida, ou ao menos o quanto for possível, daquela que Deus “Abba” nos ama. Um feliz dia do “Abba” para todos nós, que temos responsabilidades paternais.
Dr. Marcelo Carneiro da Silva
Professor da FATIPI e pastor da Igreja Metodista
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