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A MEMÓRIA É O CORAÇÃO DA ESPERANÇA E A ESPERANÇA É O CORAÇÃO DA VIDA

“Quero trazer à memória o que me pode dar esperança”

(Lamentações 3.21).


O Livro de Lamentações de Jeremias é um marco importante na história do povo de Deus. No dia 9 do mês Abe do ano 587 AC, a cidade de Jerusalém caía diante dos exércitos da Babilônia. Foi um desastre terrível. O sofrimento atingiu um nível monumental. Lamentações é a cerimônia fúnebre do enterro da cidade santa. Os episódios históricos que dão origem às lamentações estão em 2Reis 25, e são perfeitamente identificáveis no lamento fúnebre: o cerco, a fome, a penúria, a miséria, a fuga do rei, o saque do Templo, o incêndio da cidade, o fogo no Templo, o fogo no palácio real, o fogo nos monumentos importantes, a demolição dos muros, a matança dos líderes, o exílio dos habitantes, a caminhada de 900 quilômetros em direção ao cativeiro.

Essas lamentações foram escritas na forma de poema, e o poema, na forma de acróstico, usando o abecedário hebraico. Os cinco lamentos que compõem o livro são, ao lado do Salmo 119, os acrósticos mais bem elaborados de toda a Bíblia. Cada um dos cinco lamentos percorre todo abecedário hebraico de Alef a Tau, de Alfa a Ômega, de A a Z: 22 letras, 22 versos. O uso do acróstico no texto tem uma tríplice finalidade: 1) facilitar a memorização; 2)a garantia de que a tristeza e o desespero sejam captados por completo. De A a Z, significa que tudo está incluído. Avançando com as letras do alfabeto vai se cobrindo todo terreno do sofrimento. Nenhum detalhe fica de fora.

Ao usar o alfabeto, o acróstico é a proclamação de que o mal, a dor, o sofrimento que causam tanto lamento, assim como tem um começo (A) também tem um fim (Z). O abecedário é para comunicar a sensação de que há um limite para o sofrimento. Quando você está no “A”, você sabe que o “Z” está longe – lá na frente – mas você também sabe que quando chegar no “Z” terá chegado o fim. É como se o texto de Lamentações carregasse uma mensagem cifrada: Que as lágrimas corram, mas que também cessem. O mal não é inesgotável. Ele tem um fim.

Em Lamentações, os sentimentos são intensos e profundos. Não há em toda a Bíblia um texto mais cheio de sentimentos do que Lamentações. Jeremias é a encarnação desses sentimentos: “Eu sou o homem que viu a aflição pela vara do furor de Deus”. Aflito, esmagado, cansado, oprimido, a nação escravizada, o povo humilhado – era o caos por todos os lados. Além disso, havia a idolatria, o afastamento de Deus, a apostasia da fé. O povo dormiu sem fé e acordou sem sonhos. Dormiu incrédulo e acordou cínico.

Inconformado, em desespero, ele clama: Olhem! Olhem! Vejam se há dor como a minha dor. Era uma espécie de antecipação do varão de dores. Mas quando está no auge de sua dor, parece cair em si mesmo. Sacode de sobre si todo esse entulho emocional. Recompõe-se e diz: “Não... não permitirei que a minha vida seja apenas um baú de más e tristes recordações. Não permitirei que o meu coração se transforme em poço de amarguras. Não permitirei que a minha mente seja uma rede de fracassos e decepções. Não... chega... basta... a minha memória não será para sempre a memória da dor. Não! Eu quero trazer à memória o que me pode dar esperança”.

Como Jeremias, nós vivemos na ambiguidade da existência. Há dias que somos um rio de alegrias; há outros em que somos um mar de tristeza. Há dias em que somos cidadãos da esperança. Há dias em que somos arautos da desesperança. Há dias em que somos campeões da fé. Há dias em que somos soldados da derrota. Há dias em que amanhecemos com um canto de louvor nos lábios. Há dias em que somos a boca da murmuração. Há dias de luz. Há dias de trevas. Essa ambiguidade faz da vida uma dialética entre o sim e o não. O que é e o que não é. O que quero e o que não quero. O que posso e o que não posso. Como temos vivido essa ambiguidade! Talvez a maioria de nós esteja vivendo de modo negativo, marcado pelas perdas: perda da fé, perda da doçura de ser, perda da paciência de esperar, da alegria de crer, de confiar, de ouvir, de ver, de sonhar. Somos, assim, um poço de desesperança.

Precisamos fazer como Jeremias no meio do caos: Chega... chega de pessimismo, chega de amargura, chega de desesperança. Também precisamos trazer à memória aquilo que nos pode dar esperança. Mas, o que ou quem nos podem devolver a esperança? Para Jeremias só há um que nos pode dar ou devolver a esperança: Jeová, o Senhor, o Deus Eterno. Mas ele não é um deus qualquer. É o Deus cheio de misericórdia. “As misericórdias do Senhor são a razão de não sermos consumidos. Porque as suas misericórdias não têm fim, elas se renovam a cada manhã”. As misericórdias do Senhor não envelhecem, não congelam, não apodrecem, são sempre novas. Quero trazer à memoria o que me pode dar esperança.

Mas o nosso Deus não é apenas misericórdia. Ele é fiel e grande é a sua fidelidade; se formos infiéis, ele permanece fiel porque não pode negar-se a si mesmo. Deus não muda. Deus não volta atrás. Por mais que eu esteja deprimido, por mais que eu claudique, por mais que eu o negue, por mais que eu esteja no limiar da descrença, por mais que eu tenha feito uma curva na verdade que devia ser a minha vida há um compromisso de Deus em me segurar. Posso olhar em volta e ver que tudo está caótico: a família, o trabalho, os negócios, eu mesmo, mas no meio disso tudo não perco a esperança porque o meu Deus não negocia a minha vida com ninguém. Ele casou-se comigo. É fiel, fez uma aliança, um pacto.

Preciso trazer à memória aquilo que me pode devolver a esperança. E a palavra de Deus não me deixa esquecer: Deus é fiel. Por isso não perco a esperança. Por isso eu aguardo a salvação do Senhor sem alarde, sem barulho, sem lamúria, sem murmuração, sem amaldiçoar o dia em que nasci, sem me queixar da herança que recebi. Eu aguardo a salvação do Senhor em silêncio. Porque ele é fiel.

Outra razão para eu não perder a esperança é que o meu Deus é um Deus cheio de compaixão. Compaixão é mais que misericórdia. Até mesmo a sua ira aponta para a compaixão. Daí o conselho do teólogo reformado P. T. Forsyth: “Sejam gratos a Deus porque ele se importa tanto com vocês que chega a ficar irado”.

Deus não deixa ninguém triste para sempre. Deus não nos quer cabisbaixos, arrasados, encurvados, caídos. Ele não está de olhos fechados, de ouvidos tapados, de mãos encolhidas. Ele está próximo. Ele é Emanuel. É Deus conosco. Ele estende a sua mão. É o Deus da compaixão, da proximidade, do livramento, da libertação. Por isso ainda há esperança. [...] Vamos trazer à memória, vamos recordar, vamos relembrar com gratidão: só e tudo aquilo que nos dê esperança, só e tudo aquilo que nos devolva a esperança, só e tudo aquilo que nos alimente a esperança. O nosso Deus é fiel. O nosso Deus é misericordioso. O nosso Deus é cheio de compaixão. Por isso ainda há esperança [...]. Soli Deo Gloria!


Rev. Abival Pires da Silveira

Texto de abertura do livro “Memoria e esperança”.

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