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Chamados à Vida¹

  • comunicacao299
  • há 6 horas
  • 5 min de leitura


1. O sopro: primeira “mídia” do Reino

“E Deus soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou alma vivente.” (Gn 2.7)

Antes da primeira lei, antes da primeira profecia, antes do primeiro versículo escrito, Deus comunicou-se por um gesto. O sopro foi a primeira linguagem. A vida, o primeiro meio.

Quando afirmamos que Deus nos chama para viver, estamos dizendo que Ele nos chama para habitar e encarnar a sua mensagem. Deus poderia ter escolhido o silêncio eterno, mas decidiu falar. E não falou apenas com palavras — falou com corpo, vento, cheiro de jardim, som de rio, presença no frescor da tarde. Essa tem sida minha busca ministerial e educacional, celebrar um Deus que escolheu a comunicação para se revelar e relacionar, nos chamando. A revelação de Deus é comunicação. O próprio Cristo é definido como Verbo (Jo 1.1), e isso significa que o chamado para a vida é também o chamado para comunicar a vida.

2. A vida como vocação comunicacional

A Escritura mostra que viver é também transmitir. João 10.10 – “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância.” Deuteronômio 30.19-20 – “Escolhe, pois, a vida.” Colossenses 3.3-4 – “Cristo é a nossa vida.” Assim, lembramos que a vida é vocação, mas também mensagem em circulação. Somos a “carta de Cristo” (2Co 3.3), enviada e lida no mundo.

Como afirma Karl Rahner: “O cristão é chamado a tornar-se a palavra que Deus diz ao mundo.” Ou, como nos faz pensar John Piper: “Deus é mais glorificado em nós quando estamos mais satisfeitos nele — e essa satisfação é o que comunicamos ao mundo.” Michael Horton acrescenta: “O evangelho cria a igreja, e a igreja vive para comunicar o evangelho na forma como adora, serve e peregrina no mundo.”

Assim, entendemos que o Deus que fala nos autoriza a falar, pois Ele não requer dos Seus nada que Ele mesmo não seja e faça. E isso nos leva ao terceiro ponto desta reflexão.

3. A comunicação do já e ainda não — prolepse escatológica

A revelação de Deus não se dá fora do tempo. Ela é transmitida dentro da tensão escatológica: Já – O Reino já está entre nós, e comunicamos a esperança como realidade presente. Ainda não – O Reino ainda não foi plenamente consumado, e comunicamos a esperança como promessa futura.

Teólogos mais rigorosos e clássicos chamam de “prolepse escatológica” que é, portanto, um ato de comunicação: viver e anunciar agora os valores de um Reino que só será plenamente visto no fim. Hans Urs von Balthasar escreve: “O cristão é testemunha do amanhã que já começou.” Isso significa que cada gesto, cada história contada, cada liturgia é uma amostra gratuita do futuro de Deus.

4. Entre o que se diz e o que se cala — vias catafática e apofática

Deus não apenas decidiu falar. Ele também decidiu calar-se. E, curiosamente, esse silêncio não é ausência de comunicação, mas parte essencial da maneira como Ele se revela. Há momentos em que Deus diz “Eu sou…”, usando a clareza da afirmação, e momentos em que Ele se envolve no véu do mistério, como quem nos convida a permanecer em silêncio diante da Sua presença.

A tradição cristã, especialmente nos escritos de Pseudo-Dionísio Areopagita, chamou esse duplo movimento de via catafática e via apofática. A primeira, catafática, é a via afirmativa — a maneira como falamos de Deus a partir daquilo que Ele revelou. É o campo da pregação, da catequese, da proclamação pública: “Deus é amor”, “O Senhor é meu Pastor”. É a clareza que instrui, consola e guia.

A segunda, apofática, é a via negativa — o reconhecimento de que Deus é maior do que todas as nossas palavras. É o silêncio que não foge da conversa, mas a aprofunda. É dizer o que Deus não é para deixar claro que Ele está além do que conseguimos definir. É a linguagem das pausas litúrgicas, do olhar contemplativo, do mistério que não se apressa. Gregório de Nissa compreendeu isso quando disse: “O silêncio sobre Deus não é ausência de palavras, mas a linguagem mais adequada para aquilo que não cabe no dizer.” Essas duas vias não competem, se completam. Na vida da igreja, a via catafática nos garante firmeza doutrinária e clareza no anúncio, enquanto a via apofática nos preserva da arrogância de pensar que já esgotamos o mistério. Pastoralmente, isso significa que comunicar não é apenas falar mais, mas falar certo e calar certo. É proclamar a verdade quando ela deve ser dita e, às vezes, permitir que o silêncio pregue mais alto que o sermão.

5. Comunicação encarnada

O ponto alto da revelação não é apenas quando Deus falou, mas quando Ele veio. A Encarnação é o ápice da comunicação divina: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade” (Jo 1.14). Deus não apenas enviou uma mensagem — Ele se fez a mensagem. Em Jesus, Palavra e vida tornaram-se inseparáveis.

Essa é a lógica que molda o nosso chamado: a vida é o conteúdo, pois é nela que o evangelho se encarna; o corpo, a presença e as ações são o meio, porque não pregamos apenas com a boca, mas com o jeito de estar no mundo; e o Espírito Santo é o transmissor, garantindo que a mensagem chegue viva, transformadora e fiel ao coração do Pai.

Tudo o que somos e fazemos comunica algo sobre Deus — quer intencionalmente, quer não. Nossas conversas, nosso trabalho, nossa forma de lidar com a dor, a maneira como amamos e servimos, tudo se torna carta aberta lida pelo mundo (2Co 3.2-3). Ser igreja é, portanto, viver de tal forma que Cristo não apenas seja ouvido nos nossos discursos, mas reconhecido na nossa vida.

6. Convite final — viver como mensagem

Escolher viver é escolhermos comunicar Cristo. Isso não é opcional: mesmo o silêncio comunica algo sobre quem somos e no que cremos. O chamado para a vida é vivermos de modo que o céu se reconheça em nós. É fazer da própria existência uma parábola viva, um texto lido e relido pela comunidade, uma imagem visível do invisível. “Vós sois a carta de Cristo, escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo” (2Co 3.3).

Notas

1.       Via catafática (do grego καταφατικός, kataphatikós, “afirmativo”): conceito sistematizado por Pseudo-Dionísio Areopagita (séc. V–VI), enraizado nos Padres Capadócios. É a comunicação do mistério divino por atributos revelados.2. Via apofática (do grego ἀποφατικός, apophatikós, “negativo”): também articulada por Pseudo-Dionísio, inspirada por Orígenes e Gregório de Nissa. É a comunicação do mistério por meio do silêncio e da retirada de afirmações limitadas.

2.       Este artigo propõe associar a cultura de mídia ao chamado à vida por meio da comunicação, desenvolvendo a noção de uma teologia da comunicação encarnada. Constitui-se, assim, como a tese teológica e teórica do autor.


[1] Marcos Camilo de Santana. Professor da FATIPI na disciplina de Comunicação e Cultura de Mídia.

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